Um tema recorrente e de importância central na Psicologia é o da motivação. A pergunta que todo estudante já se fez é: por que fazemos o que fazemos? Todas as teorias psicológicas, desde as mais abrangentes até as microteorias, buscam responder a isso de algum modo. Cada uma irá trazer explicações diferentes para o que irá motivar os mais variados tipos de atitudes, interesses, desejos e comportamentos humanos.
A maioria das teorias irá localizar a “verdadeira motivação humana” dentro do indivíduo. Sejam quais forem os motivos que nos levam a fazer algo, geralmente são atribuídos a algo não-observável, intrínseco, que reflete no que fazemos. Com isto, a motivação seria algo difícil de mensurar e observar. Daí, provavelmente, vem a variedade de teorizações que versam sobre ela e tentam defini-la.
Pode-se fazer um paralelo com a velha piadinha do “por que a galinha atravessou a rua?”. A depender da teoria, existem diferentes respostas para essa pergunta. Um psicólogo, ao observar o fenômeno, poderia responder que a galinha tem um instinto de atravessar a rua quando a vê. Outro, que a galinha atravessou a rua porque estabeleceu uma meta que para ser cumprida envolvia chegar ao outro lado. Outro, que a galinha chegou ao outro lado por ter um desejo de algo que lá estava, impulsionado por forças psíquicas em seu inconsciente. Mais ainda, vai que a galinha viu os seus pintinhos do outro lado da rua e atravessou para encontrá-los por ter uma forte necessidade de afiliação.
As explicações são bastante diversas, mas pouco esclarecem sobre as causas do comportamento. A maioria dos conceitos nada mais é do que uma elaboração cheia de palavras, mas tautológica, sobre o único dado que temos: o comportamento observável. A galinha atravessou a rua porque estava com esse desejo, mas a única evidência que temos de tal desejo é o fato de que ela atravessou a rua. E, deixando as galinhas de lado e passando às pessoas, que podem descrever verbalmente os motivos de suas ações, o problema não cessa.
Quando perguntamos a alguém por que ela fez algo, muitas vezes a resposta é inespecífica. “Porque eu estava com vontade”, “porque eu quis” e “porque eu estava a fim” são típicas respostas que todo questionador já ouviu alguma vez. Isso pode acontecer porque a pessoa aprendeu a atribuir seu comportamento a desejos e vontades próprias, algo que é comum na nossa comunidade verbal – na nossa cultura dizer que houve algo "intrinsecamente nosso" ali atuando é corriqueiramente reforçado.
Outra atribuição comum de causa é a referência tautológica a algum sentimento ou emoção: uma pessoa que bateu em alguém fez isso “porque estava com raiva”, ou, mais ainda, “porque é agressivo”, sendo que a raiva ou agressividade são não muito mais do que referentes ao fato de que ela bateu em alguém.
Quando um incitamento antecedente não é facilmente reconhecido, provavelmente se atribuirá papel mais importante à condição sentida. Uma pessoa que esteja irada “sem saber por quê” com maior probabilidade atribuirá seu comportamento a seus sentimentos. Parece não haver nada mais a que atribuí-lo. Uma emoção ou disposição de ânimo moderada é geralmente difícil de ser explicada e por isso se diz que a própria disposição é casualmente efetiva (se bem que ainda precisemos procurar as origens da disposição para explicar o comportamento). (Skinner, 1972, p. 137)
Isso pra não falar da terrível resposta “Porque sim!”.
Mas “porque sim não é resposta!”
Muitas dessas antigas teorias da motivação são grandes “porque sins”. Não são falseáveis e não esclarecem as relações entre o comportamento e a motivação deste, por recorrer a um raciocínio circular. A maioria delas conta com poucas possibilidades de experimentação, muitas vezes recorrendo a relatos verbais para medir a motivação dos indivíduos – como a teoria da hierarquia das necessidades de Maslow, aparentemente impossível de ser testada experimentalmente (Sampaio, 2009), e diversas outras que recorrem comumente a escalas de mensuração para avaliar a motivação, como a teoria da Autodeterminação de Deci e Ryan e a teoria do Fluxo (flow) de Czikszentmihalyi (exemplos em Boruchovitch, 2008 e Farias, Kovacs e Silva, 2008).
Mesmo atualmente ainda há novas teorias que continuam pecando por não esclarecer tais relações, ao atribuir as causas do comportamento unicamente a fatores genéticos ou neurais, muitas vezes sem o aprofundamento necessário, e sem considerar a interação destes fatores com o mundo que os rodeia. E, ao não esclarecer tais relações, todas essas teorias deixam escapar as possibilidades de intervenção – afinal, se a motivação vem “de dentro” e é algo com a qual apenas o indivíduo pode se haver, dependendo da sua vontade ou apenas da sua constituição inata, como faríamos para motivar alguém a fazer alguma coisa, ou para que sua motivação para algo não cesse, ou mesmo para desmotivá-lo de algo?
Uma mudança a princípio sutil na forma de formular essa questão – “por que fazemos o que fazemos” – pode ser importante para esclarecer o que é a motivação. Tal questão pode dar margem a formulações que não podem ser empiricamente respondidas. Em vez de se perguntar isto, talvez o mais adequado seria perguntar “em que condições fazemos o que fazemos”. A partir daí, poderemos estudar as relações entre o que acontece no ambiente do indivíduo e seu comportamento (Todorov e Moreira, 2005).
A Análise do Comportamento procura estudar justamente tais relações. Os eventos antecedentes ao comportamento afetam, de diferentes formas, a probabilidade de estes ocorrerem na presença de um determinado estímulo. Nesse sentido, podemos dizer que tais condições antecedentes motivam determinadas respostas ou classes de respostas. A motivação, portanto, pode mesmo ser estudada empiricamente, sem recorrer à causalidade interna, que parece, vistas as teorias anteriormente citadas, mais obscurecer do que ajudar.
Necessidades e desejos tendem a ser entendidos mais como psíquicos ou mentais, enquanto apetites e impulsos tendem a ser concebidos mais como fisiológicos. Mas são termos usados livremente quando nenhuma dessas dimensões foi observada. [...] são termos convenientes no discurso casual, e muitos estudiosos do comportamento têm mostrado interesse em estabelecer semelhantes estados intervenientes hipotéticos como conceitos científicos legítimos. Uma necessidade ou um desejo poderiam ser redefinidos simplesmente como uma condição resultante de privação e caracterizada por uma especial probabilidade de resposta. (Skinner, 1953, p. 157-158)
O conceito de operações estabelecedoras (OEs), definido inicialmente por Keller e Schoenfeld e posteriormente reformulado por Michael* (Miguel, 2000) ajuda a entender por que em determinadas situações sentimo-nos impelidos a fazer alguma coisa, ou mesmo a não fazer nada de jeito nenhum. Privação, saciação e estimulação aversiva são formas de alterar a efetividade de um reforçador e, consequentemente, a freqüência de uma resposta relacionada.
Voltando à nossa amiga que atravessou a rua: a depender do efeito reforçador de tal comportamento e das condições anteriores em que a galinha estava lá do lado anterior, podemos afirmar o porquê de tal desejo tão aparentemente repentino de atravessar a rua. Se ela estava privada de água ou comida e ao atravessar pôde obter isso, provavelmente atravessou por esse motivo. Vai ver, tinha um galo do outro lado e a galinha estava há muito tempo sem ver um bonitão daqueles na frente, bastando agora atravessar a rua para ter esse comportamento reforçado.
Estimulação aversiva motiva também, não se esqueçam.
Usando um exemplo humanóide, mas tão animalesco quanto: já vi muita gente se perguntando o que leva alguém a sair pra “pegar geral” no carnaval aqui de Salvador. Ora, a depender da condição de privação anterior do indivíduo, até quem não gosta de axé pode passar a pensar na possibilidade. Da mesma forma, pode ir coagido por alguém que valorize tal comportamento e encha o saco até que o sujeito vá. Pode também deixar de ir se já tiver “pegado geral” em outros ambientes que frequentou pouco tempo antes. Nisso, o carnaval soteropolitano pode então se tornar altamente motivador, ou não, do comportamento de “passar o rodo”. Claro que podem existir outros reforçadores em jogo, a depender da história de vida do indivíduo – reforçamento do grupo social em participar da festa, a própria música, a bebida, para alguns a possibilidade de sair esmurrando a esmo, entre outras bizarrices. Mas as OEs já são capazes de motivar alguém a participar do festim enlouquecido.
Concluindo: nossas vontades, desejos, necessidades, impulsos e instintos são também fruto de nossa relação com o ambiente. Por mais que atribuir a uma “força interior” seja mais tentador – mais belo, mais poético, mais “profundo” (Skinner, 1974) –, conhecer, sem medo, as variáveis que afetam a nossa motivação é indispensável para que possamos entender por que e como fazemos o que fazemos, para então, poder atuar sobre isso da forma mais efetiva possível. E essa, no final, é a beleza da ciência – permitir a nós operar sobre o mundo.
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* Jack Michael também reformulou o conceito de Operações Estabelecedoras, elaborando novos conceitos de OEs condicionadas, que não expus aqui, mas que também ajudam muito a entender a motivação em humanos. Para saber mais sobre elas, um bom começo é o texto de Miguel (2000), disponível abaixo.
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Referências
Boruchovitch, E. (2008). Escala de motivação para aprender de universitários – EMA-U: propriedades psicométricas. Avaliação Psicológica, vol. 7, nº 2, pp. 127-134.
Farias, S. A. de, Kovacs, M. H. & Silva, J. M. da. (2008). Comportamento do consumidor on-line: a perspectiva da teoria do fluxo. RBGN, vol. 10, nº 26, pp. 27-44.
Miguel, C. F. (2000). O conceito de operação estabelecedora na análise do comportamento. Psicologia: Teoria e Pesquisa, vol. 16, nº 3, pp. 259-267.
Sampaio, J. dos R. (2009). O Maslow desconhecido: uma revisão de seus principais trabalhos sobre motivação. Revista de Administração, vol. 44, nº 1, pp. 5-16.
Skinner, B. F. (1953/2003). Cap. 9 - Privação e saciação. In: ____, Ciência e Comportamento Humano. 11ª ed. São Paulo, Martins Fontes, pp. 155-175.
Skinner, B. F. (1974). Cap. 10 – O mundo interior da motivação e da emoção. In: ____, Sobre o Behaviorismo. São Paulo, Cultrix, pp. 129-143.
Todorov, J. C. & Moreira, M. B. (2005). O conceito de motivação na psicologia. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, vol. 7, nº 1, pp. 119-132.
__________________________________________________________________________Dedicado aos meus queridos futuros psicólogos monitorados por mim na disciplina de Processos Psicológicos Básicos - Motivação e Emoção da UFBA. :)
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