sexta-feira, 16 de março de 2012

Os últimos dias de B. F. Skinner

Skinner morreu em 1990, tendo sucumbido à leucemia com que fora diagnosticado um ano antes. Até o dia da sua morte, no entanto, ele não descansou na construção e defesa da teoria que criou, do mesmo jeito combativo e polêmico que caracterizou sua trajetória. Num artigo publicado em outubro de 1990 no Journal of Applied Behavior Analysis (JABA), sua filha, Julie S. Vargas – que também se dedicou à análise do comportamento e hoje controla a fundação que leva o nome do pai –, os últimos dias de Skinner são descritos de maneira tocante. Aqui vai a tradução do artigo, vale a pena ler.

Meu pai sempre falou com admiração da morte do seu avô. “Ele morreu na ativa1”, ele dizia, aprovando. Algumas vezes adicionava: “É desse jeito que eu quero ir”. Bem, ele chegou perto.

Nos últimos meses meu pai continuou no padrão da sua “aposentadoria”: cedo estava de pé para escrever, café-da-manhã, uma caminhada, compromissos com visitantes e correspondência até o almoço. Às tardes ele geralmente relaxava com música e leitura leve, ficando em forma para a próxima manhã de trabalho. Até sua morte, a correspondência nunca diminuiu. Inevitavelmente, entre as cartas de colegas profissionais, ele recebia algumas cartas de estudantes no colégio pedindo-lhe para explicar o seu trabalho. Cartas para gente famosa nem sempre são bem informadas. O senador Kennedy costumava contar sobre ter recebido uma carta que dizia: “Escolhi você como meu senador favorito. Você pode me dizer por quê?”. As cartas para meu pai dificilmente eram melhores. Não obstante, ele respondia todas, sugerindo polidamente que se eles procurassem em suas bibliotecas poderiam encontrar um livro chamado Walden II ou Ciência e Comportamento Humano que responderia a suas perguntas.

Oito dias antes de sua morte, como os leitores desta revista provavelmente sabem, meu pai recebeu, da Associação Americana de Psicologia (APA), a primeira Menção Honrosa da APA pela Notável Contribuição à Psicologia durante sua vida. Os oficiais da associação asseguraram à família que manteriam meu pai afastado de multidões – o que era importante por causa do aumentada susceptibilidade dele à infecção pela leucemia – e mantiveram a palavra. À 1h do dia 10 de agosto, uma limusine foi à casa dos Skinner para levar nosso grupo ao hotel de convenções. Ali nós fomos recebidos e levados andares acima em nosso próprio elevador para um quarto do hotel, “como estrelas de cinema”, como meu pai comentou. Poucos minutos antes da sessão de abertura começar, fomos levados novamente ao térreo e pegamos um caminho pelos fundos para a porta lateral do auditório. Eu estava segurando o braço do meu pai quando entramos. A sala estava lotada. Uma segunda sala ao lado havia sido aberta e ela também estava transbordando. Quando demos dois passos para dentro da sala, todos ficaram de pé e começaram a aplaudir. Meu pai fez um aceno desajeitado de cabeça em cumprimento enquanto continuava andando – posso dizer que ele não esperava tal recepção. Os aplausos eram estrondosos. Eles continuaram enquanto nos encaminhávamos ao pé dos degraus no meio do palco. Eles continuaram enquanto meu pai subia os degraus. Continuaram, sem diminuir, enquanto meu pai era escoltado pelo palco até sua cadeira. Ele se voltou e curvou a cabeça amavelmente, mas não houve sinal de redução dos aplausos. Após 50 minutos preliminares, foi o momento de meu pai receber o prêmio.

Skinner em sua última palestra, no prêmio da APA (daqui)

Eu estava feliz de ele ter decidido não usar um texto ou mesmo notas, já que a luz ofuscante das equipes de câmeras de TV teria impossibilitado a ele de enxergar qualquer coisa. Ele começou: “Presidente Graham, ex-presidente Matarazzo, ilustres convidados, senhoras e senhores...” Ele falou sem problemas, do jeito que eu tinha ouvido em dúzias de convenções, perfeito com nomes e datas que eu teria problemas em lembrar. O discurso se direcionou à cisão na psicologia, “uma parte direcionada a encontrar a essência dos sentimentos, a essência dos processos cognitivos, e a outra direcionada a referências de contingências de reforçamento”. Ele fez uma analogia entre a dificuldade de aceitação da seleção natural de Darwin e a dificuldade de aceitação da sua própria seleção por conseqüências, culminando na afirmação: 


“Até onde concerne a mim, a ciência cognitiva é o criacionismo da psicologia”. 


Todo o público suspirou. Bocados de aplausos puderam ser ouvidos aqui e ali. (Obviamente a cisão não era meio a meio). Skinner continuou, terminando em exatamente 15 minutos – como tinha planejado. Depois de ser novamente escoltado através das escadas (novamente aplaudido), ele deixou o local. E, devo dizer, quase todo o auditório fez o mesmo.

Durante o fim de semana, meu pai trabalhou no artigo de onde seus comentários foram retirados. Ele sairia no The American Psychologist e ele estava ansioso para terminá-lo. Nós falamos sobre o futuro – no que ele trabalharia em seguida. Ele não achava que teria tempo para terminar um trabalho que tinha feito sobre derivação das palavras, ou colocar em forma de artigo material de um livro sobre ética que ele tinha começado, mas desistido. Como se viu, ele estava certo sobre o tempo.

Na segunda pela manhã, meu pai tinha uma entrevista de uma hora com Dan Bjork, um historiador que estava trabalhando numa biografia dele. À tarde, eu o levei para a sua transfusão de plaquetas. Naquela noite eu estava trabalhando no canto que havia criado numa despensa no porão, quando recebi uma ligação. Era meu pai. “Julie, você poderia vir aqui?” Corri até o seu estúdio e o encontrei tremendo sob vários cobertores em sua poltrona reclinável. Entrei em pânico. Os sintomas eram os mesmos que o tinham colocado em coma um tempo atrás. Incapaz de chegar a um médico, liguei para o 911. Quando a ambulância chegou ele se sentia melhor, embora seu coração ainda estivesse acelerado. A equipe lhe deu oxigênio e tirou toda sorte de medidas, conferindo tudo por telefone com o pessoal médico do seu hospital. O oxigênio fez ele se sentir melhor, então eu liguei um velho reservatório que ele tinha guardado anos atrás. Encorajei-o a continuar sentado porque seu coração continuava acelerado, e ficar sentado deixa o coração sob menos esforço. Ele concordou, e pegou um livro pra ler. Montei uma caminha no estúdio dele e trouxe meu violão. Toquei para ele por uma hora – todas as peças clássicas que eu tocava razoavelmente bem. Isso o agradou. Ele não havia me ouvido tocar há um tempo e comentou sobre a “riqueza” do som. O oxigênio e eu acabamos ao mesmo tempo. Mais tarde, na cama dele, um cubículo de dormir desenhado ao estilo japonês num canto mais distante do estúdio, conversamos. Sentei na beirada, segurando sua mão, como muitas vezes, de olhos úmidos, ele segurou a minha enquanto me colocava na cama quando eu era criança. Apenas desta vez, havia lágrimas nos olhos de ambos.

Acordei pela manhã para encontrá-lo acordado, mas fraco. A despeito da minha insistência, ele se recusou a cancelar com uma equipe de TV marcada para gravar uma sequência para o programa de notícias daquela noite. Na manhã de quarta-feira, outra entrevista. Naquela tarde ele foi para o hospital pela última vez. Mas um dia antes de morrer, no hospital, ele trabalhou nos últimos ajustes no seu artigo para o American Psychologist.

B. F. Skinner era membro da Hemlock Society2 e acreditava no direito de alguém tirar sua própria vida. Ele fez um testamento em vida e, no hospital, recusou novamente esforços “heróicos” que poderiam prolongar o funcionamento dos seus órgãos. Perto do fim, sua boca estava seca. Depois de receber um pouco de água, ele disse sua última palavra: “Maravilhoso”. 
____________________________________________________________________________
[Tradução publicada originalmente no Comporte-se]

Texto original - Vargas, J. S. (1990). The last few days. Journal of Applied Behavior Analysis, nº 23, vol. 4, pp. 409-410.
Skinner em sua última palestra na premiação da APA, no YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=Bf-GKbcSFNo


1. No original, “died with his boots on”, expressão típica na língua inglesa, com sentido aproximado ao colocado aqui.
2. Hemlock Society é uma associação que defende o suicídio assistido em alguns estados dos EUA. Mais sobre a associação neste link. "Hemlock", aliás, significa "cicuta", planta venenosa associada à prática do suicídio "honrado" desde algum tempo.

Um comentário:

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.