terça-feira, 3 de abril de 2012

"Não existem ateus na Bahia", segundo Cynara Menezes

Ser ateia é um desafio, numa sociedade dominada por religiosos. E parece que para a jornalista Cynara Menezes, da Carta Capital, o desafio envolve não comer bacalhau com a família na semana santa. E passar longe de nascer na Bahia.

Segue texto publicado na Carta Capital, disponível na íntegra aqui:  http://www.cartacapital.com.br/cultura/nao-existem-ateus-na-bahia/

Um ateu baiano é que nem uma pessoa que crê em Deus: ambos têm diante de si a dura missão de convencer o mundo. O crente é desafiado a provar a vida inteira, inclusive a si, que há um Deus. Já o ateu baiano, nascido numa terra cuja capital, reza (ops) a lenda, possui uma igreja para cada dia do ano – sem contar os inúmeros templos evangélicos e terreiros de candomblé –, carrega a sina de provar que ele próprio existe. Que de fato não crê em nada, mas nada mesmo. Está lançado o desafio. Como um São Tomé do ceticismo, só acredito vendo. "Não dou a mínima para Deus, mas adoro São Francisco. E Iemanjá é praticamente uma pessoa da família. Vovó costuma dizer: 'Gosto muito dela!"'

Até o mais célebre ateu baiano, o comunista Jorge Amado, cujo centenário se comemora este ano, tinha sua queda pelos orixás. Todo mundo lá sabe disso: era o ateu que “simpatizava” com o candomblé. Estive no velório do escritor, em 2001. Havia uma cruz atrás do caixão. E uma senhora da Irmandade da Boa Morte, confraria afro-católica do recôncavo, que entoava cânticos, me disse: “Sabemos que ele era ateu, mas também que era do culto afro”. Não é por acaso que o título do famoso romance de sua mulher, Zélia, é “Anarquistas, Graças a Deus”. O casal Amado pertencia a um tipo bastante comum na Bahia: o “ateu-de-todos-os-santos”.


Jorge Amado chegou a exercer o posto de Obá de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá, o respeitadíssimo terreiro de mãe Stella de Oxóssi, no bairro do Cabula. Ser Obá, um cargo honorífico, significa ser amigo e protetor do terreiro. Ainda moço, o escritor tinha recebido do pai-de-santo Procópio seu primeiro título no candomblé, Ogã, o “guardião das chaves da casa”. Bem a propósito, uma das frases mais belas sobre a fé que conheço, de Caetano Veloso, dizem que foi inspirada em Jorge Amado: “Quem é ateu e viu milagres como eu/ Sabe que os deuses sem Deus/ Não cessam de brotar,/ Nem cansam de esperar”. Ateus baianos enxergam milagres…

Quando era adolescente, em Salvador, cismei de ser atéia, embora só tenha parado de rezar o “Santo Anjo” antes de dormir já perto dos 30. Vocês não imaginam o tanto de gozação que sofri da família: “Ih, ela agora inventou de não acreditar em Deus”, e dá-lhe risadaria. Logo eu, que era a primeira a entrar na fila dos netos que iam tomar banho de folha no sofá da sala de estar dos avós… Meu pai ainda hoje fala assim: “Sei que você não acredita em nada, mas… Aliás, como uma pessoa consegue viver sem fé nenhuma?”

Na faculdade, um professor contou a história de um amigo superateu baiano que na hora da morte se agarrou num crucifixo e começou a gritar: “Meu Deus, não me deixa morrer, eu acredito! Eu acredito!” Nestes momentos, meu ateísmo sofria sérios abalos, assim como minha fé na existência de ateus baianos. Com o tempo, fui me tornando cada vez menos atéia e a simpatizar cada vez mais com os santos, católicos e do candomblé. Como Jorge Amado, sou sincrética pacas. Não dou a mínima para Deus, mas adoro São Francisco. E Iemanjá é praticamente uma pessoa da família. Vovó costuma dizer: “Gosto muito dela!”

Me arrisco a dizer que existe uma fé ou talvez uma dúvida nata no baiano. No máximo, há baianos agnósticos. Na Bahia, mesmo o ateu que se diz ferrenho tem seu quarto dos santos no fundo da casa, carrega consigo uma medalhinha ou um patuá, toma banho de pipoca no dia de São Lázaro, “só de farra”, ou diz para a avó “a bença, vó” – “só por costume”. Como diria outro baiano, Gilberto Gil, “mesmo a quem não tem fé/ a fé costuma acompanhar/ pelo sim, pelo não…”. De onde virá isso, de nossa África ancestral? Não saberia dizer. Mistério.

Um livro que me impressionou e influenciou profundamente na vida foi uma pequena grande obra de Miguel de Unamuno, São Manuel Bueno, Mártir. É a história de um padre que esconde um segredo: não possui fé. E o martírio que se coloca é fingir aos fiéis, transmitir a eles a existência de Deus sem acreditar nela. O ateu baiano é uma espécie de São Manuel Bueno, Mártir da não-religiosidade. Todos os dias, o ateu nascido na Bahia professa sua não-fé em coisa alguma, mas dentro dele uma fagulha de crença no imaterial, no sobrenatural, no que não está ao alcance dos olhos – chame a isso sorte, acaso ou destino –, insiste em permanecer acesa.

P.S.: Como boa baiana, Semana Santa para mim é sinônimo de caruru, vatapá, moqueca, fritada de bacalhau. Tudo comida de santo! Boa Páscoa a todos.


Lá vamos nós.

Já vi várias tentativas de definir "o que é ser ateu" pelos mais variados grupos, desde os religiosos mais ferrenhos - geralmente acabam enfiando satanismo no meio, o que é bem engraçado - até os próprios ateus. Geralmente são tentativas malogradas. Definições são complicadas. São nada mais do que rótulos verbais que colocam como estático algo que nada de estático tem: comportamento. O comportamento "É mutável, fluido e evanescente, e, por esta razão, faz grandes exigências técnicas da engenhosidade e energia do cientista" (Skinner, 1953/2003, p. 16). É difícil falar em comportamento. Pra todo mundo que queira se apropriar a sério do tema, é claro.

O meu comportamento de não crer em deuses chega perto da definição mais básica do que é o ateísmo. Tem gente que diga que além disso, o ateu não pode acreditar em mais nenhuma força sobrenatural, ou tenha que defender o Estado Laico, o Humanismo Secular, tenha que ser a favor do aborto, contra a homofobia e mais milhões de coisas. Eu acredito que incluir tantas atividades diferentes sob o rótulo só complica algo que era para ser muito simples. A palavra ateu tem uma etimologia muito fácil de entender, até para aqueles que pouco ou nada, como eu, sabem algo de etimologia. Vindas as suas partes do grego, "a-" é um prefixo de negação, como em "ateórico" (nega teorias), por exemplo, seguido do radical "teo", que se refere a deuses. Ateu é o cara que nega deuses. Está aí, posto.

Geralmente, os ateus acabam se engajando em uma gama de comportamentos mais variada, condizente com a sua falta de crença. Ora, se não acredito em deuses, não sinto necessidade de ir a uma igreja, templo ou terreiro. Se não concordo com a existência do Deus cristão muitas das premissas bíblicas tornam-se bastante questionáveis. Se não vejo nenhuma evidência do poder do banho de folhas sobre a minha saúde, não tomo banho de folhas. Se não acredito que o dízimo vá me ajudar a garantir um pedaço do paraíso, não o pago.

Por conseguinte, instada a falar sobre religião (o que é muito comum) ou sobre algum desses comportamentos relacionados a seguir religiões, vou acabar colocando minha posição e quase que invariavelmente, entrar em debate com os que discordam de algo e me aproximar dos que concordam com algo do que disse. Não é de surpreender que existam grupos de ateus e de pessoas com posições relacionadas ao ateísmo - nós precisamos viver em grupo e a companhia de outros tende a prover muitos reforçadores, não só aos religiosos - e tem quem relacione também isso de "grupos de ateus" com uma "coisa parecida com igreja", o que é lamentável e errôneo, já que não foram os religiosos que inventaram os grupamentos humanos. Eu mesma tenho o prazer de participar de dois grupos relacionados ao ateísmo. Um é o Livres Pensadores, ao qual este humilde blog está ligado, e o outro é o Salvador Secular, que é um grupo na verdade de secularistas, mas que acaba reunindo ateus da nossa cidade... e parece que fomos reduzidos à não-existência segundo a jornalista. Buaaaah :(

nunca fui tao aomilhada ):

Ser ateu é não crer em deuses. Não é não comer acarajé, ou deixar de folgar no feriado da Semana Santa, ou não celebrar o religiosíssimo Natal. Como acarajé assim como os que crêem no Deus cristão o comem - pelo gosto, que me agrada desde sempre. Celebro a Semana Santa assim como muitos que se dizem religiosos celebram - comendo determinadas coisas mal sabendo a tradição por trás, mas muito mais pelo gosto e pelo prazer de se reunir com familiares e amigos. Meu chaveiro de casa, de fitinhas do Bonfim, eu carrego porque é colorido e fácil de achar na bolsa. Dizer que acredito "no imaterial, no sobrenatural, no que não está ao alcance dos olhos" por isso tudo é no mínimo complicado. Eu não espero que um pedaço de carne que eu coma vá incorrer em pecado por sujar o período de sofrimento de Jesus Cristo, nem dou a mínima para a tal oferenda que o acarajé é. E isso, sim, acontece porque não creio em deuses.

A velha afirmação de que "não existem ateus num avião caindo", com um toque de experiência pessoal e o recorrer à velha generalização de que todo baiano é sincretista religioso (generalização tal que é a base de mais um de vários preconceitos sobre os baianos), de resto, são o mote da crônica da Cynara, que é afinal, uma opinião. Como ateia, que conhece outros como eu (baianos, e não poucos), como analista do comportamento em formação e como baiana, parece que fui transformada em algo que não existe. Não tomo banho de folhas, não vou a missas nem cultos nem terreiros, não uso patuás, não acredito em sorte nem em destino como forças atuando sobre meu comportamento e de outras pessoas baseada em todos os estudos de grandes nomes que me precederam. Um caso apenas, como o meu, talvez não prove que ateus existem na Bahia, mas tampouco a experiência da jornalista com o que ela convenciona ser ateísmo prova que ateus baianos são uma fraude, uma brincadeirinha de adolescentes.

Concordo com o assim declarado ateu Caetano quando ele diz o que diz na frase citada, da música "Milagres do Povo". Quem é ateu e viu milagres como eu/ Sabe que os deuses sem Deus/ Não cessam de brotar,/ Nem cansam de esperar. Eu sou ateia e vejo as coisas maravilhosas da natureza brotando sem cessar. São deuses, sem esse Deus criador. Vejo todos esses deuses criados pelo maravilhoso fenômeno da natureza, o tal comportamento, com grande curiosidade e admiração, assim como talvez alguns religiosos. Só que não creio que o sobrenatural gerou nada disso. Não creio que o inexplicado seja igual a assimilar a existência de um Deus. Fazer pouco de quem assume o inexplicável e essa falta de deuses, me permite fazer pouco de uma opinião mal fundamentada como a da jornalista - que, infelizmente, com sua bagagem cultural e seja lá o que mais relativa à sua crença pessoal, só contribuiu para papagaiar mais um preconceito bobo contra os ateus, os baianos e uma desconsideração extrema aos que têm mais cuidado antes de fazer afirmações sobre comportamento alheio, esses, os cientistas.
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Referências

Skinner, B. F. (1953/2003) Ciência e comportamento humano. 11ª ed. São Paulo, Martins Fontes.

5 comentários:

  1. Concordo com o que você disse! Lendo comentarios de muitas pessoas tenho tido a imprensão que querem minimizar a todo o custo o que ela escreveu por mais generalista e presunsoso que seja porque ela no fundo é tolerante!

    Vamos então tolerar quem faz piadinha machista porque no fundo nem são machistas de verdade? Nada contra ela como pessoa, mas sinceramente achei esse texto um desserviço!

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  2. Excelente texto, Aline! Embora em um momento você defina o que é ser ateu/eia a partir da etimologia, você o faz melhor, no meu ponto de vista, quando descreve certos comportamentos diferenciados. Entrei numa discussão recentemente sobre o que é "crer". Um filósofo me disse que crer é aceitar algo como verdade. Mas o que é essa aceitação senão a emissão de certos comportamentos? Assim, eu aceito/acredito que deuses não existem no sentido de que, por exemplo, eu não me ponho a rezar, não carrego amuletos supostamente sagrados, não agradeço aos céus pelas minhas conquistas e não acho que meus fracassos sejam explicados por forças sobrenaturais. Comportamentalmente falando, acho que boas definições podem vir ao se tentar descrever comportamentos. "Aceitar algo como verdade" é algo que precisa ser operacionalizado, certo?

    Um abraço, querida! Saudade!

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  3. Obrigada pelos comentários, meninos :)

    Pois é, Gabriel. Eu entendo que o texto é uma opinião pessoal dela, e muita gente tem dito que isso basta para não levar a sério (a própria Cynara fez pouco caso no twitter quando eu disse que ela devia ter mais cuidado com uma afirmação dessas sobre todo um /estado).

    Daniel, a rigor, acho que uma definição melhor de comportamento "ateu" não é baseada exatamente no "não-crer" porque isso seria um "não-comportamento". Um ateu teria, sim, uma demonstrada tendência repetida a se comportar com descrença e ceticismo em relação a deidades e ao tido como sobrenatural. Então, o "ser ateu" não se define tanto pelo que não faz, pelo não rezar, não carregar amuletos etc. mas sim mais pelo que ele faz, que é, basicamente, duvidar da existência de deuses de forma sistemática. Acho que é daí que o rótulo fica mais amplo e inclui o humanismo, o secularismo e tal. Mas não quis entrar nessa discussão no texto porque iria me delongar e perder um pouco o foco. É como você disse: "crer" e "aceitar como verdade" são comportamentos sob um rótulo bem amplo que teria de ser bem definido para entrar em contraste com o que o ateu faz e não faz.

    Bom demais ver você por aqui, fiquei mó feliz de ver o teu comentário! Saudades também! :)

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  4. O texto é muito bom. Eu leio esse mesmo texto em diversos blogs, vou variando de blog pois o texto é o mesmo, porém acho hilário os comentários de ateus mais intolerantes reclamando da opinião da pessoa. Neo-ateu tem uma coisa engraçada: Fala o que quer dar religiões e dos religiosos. Mas se alguém fala de ateu, ou zoa ateu, critica ateu, o mesmo brinca com um jeito regional ou nacional de ser ateu eles ficam revoltadinhos.. kkk... Tem gente que não acredita em Deus... Dentro desse mesmo direito de não crer eu não creio em ateu... Na hora do sufoco já cansei de ver ateu mandar um "ai meu Deus..." kkkk ... Para mim ateísmo é da boca pra fora, pois todos foram criados por Deus e tem Deus dentro de si mesmo que digam não acreditar. Na minha opinião não existe verdadeiro ateu nem na Bahia e nem em lugar nenhum. Caetano mesmo, que se diz ateu, eu já vi na Igreja de São Jorge, no Centro do Rio, no dia 23 de abril com uma guia de Oxossi em volta do pescoço, rezar diante do Santo Guerreiro para o qual já fez até música.

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    1. Acho que você não leu/não entendeu meu texto, ou convenientemente pulou a parte sobre frequência comportamental, força, tendência comportamental...

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