quarta-feira, 9 de abril de 2014

Sobre feminismo, cultura, a pesquisa do Ipea e Análise do Comportamento

Nos últimos dias, vimos surgir na mídia questões sobre a liberdade feminina no Brasil, por meio de dois fenômenos a princípio não interligados, mas que acabaram convergindo para essa discussão. Primeiro, ocorreu na mídia uma série de denúncias relativas a casos de abusos praticados contra, majoritariamente, mulheres no transporte público. O caso que ganhou visibilidade primeiro foi o de um rapaz que foi preso em flagrante ao ameaçar uma mulher com uma faca no metrô, obrigá-la a se despir e então ejacular sobre ela – pelo que foi repreendido por populares no mesmo momento, dada a obviedade da ofensa. A partir daí, outros casos foram ganhando as páginas dos jornais, por meio dos relatos de várias mulheres de diversos lugares do país (veja alguns relatos aqui e aqui).

Depois, veio a divulgação de uma pesquisa pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A pesquisa, intitulada Tolerância social à violência contra as mulheres, foi feita da seguinte forma: frases afirmativas eram apresentadas a(o) entrevistado(a) e ele apontava, por meio de uma escala tipo Likert de 5 pontos, o quanto concordava ou discordava daquilo. Entre as afirmações, frases como “Homem que bate na esposa tem que ir para a cadeia”, “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”, “um homem pode xingar e gritar com sua própria mulher”, etc. Foram entrevistadas 3810 pessoas, de forma presencial, por meio de visita domiciliar. A maioria destas pessoas estava no Sul/Sudeste e era mulher e adulta (confira a pesquisa na íntegra aqui).

Entre os resultados obtidos, pôde-se observar repúdio da maioria dos entrevistados à ideia de que “um homem pode xingar e gritar com sua própria mulher”, por exemplo (com 89% de discordância). Mas outras questões sugeriram que a violência contra mulheres é ainda tolerada e, em alguns casos, mesmo justificada – caso das questões “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”, com 58% de concordância, e “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”, a princípio, com 65% de aprovação – o que foi corrigido depois, como veremos adiante.

A pesquisa teve repercussão imediata nas redes sociais e na mídia, e foi o estopim de diversas manifestações de repúdio. Entre eles, um protesto que começou despretensioso: a jornalista Nana Queiroz convocou mulheres do seu círculo, via Facebook, para tirar fotos acompanhadas da mensagem “Eu Não Mereço Ser Estuprada”. A manifestação acabou se tornando um viral e o evento no Facebook atraiu milhares de pessoas. Boa parte, de mulheres (e homens) que queriam apoiar a ideia; mas a parte que se tornou o centro das atenções foi a que invadiu o espaço para ameaçar e ridicularizar mulheres, incluindo ameaças de estupro contra as mulheres que ali apareceram e contra a própria Nana.

Muitos coletivos feministas, pessoas comuns e até celebridades manifestaram seu repúdio aos ataques sofridos pelas mulheres e parecia que estávamos testemunhando, finalmente, alguma possibilidade de mudança – uma reflexão forçada pelos acontecimentos que vieram à tona. Daí, veio mais uma bomba: o Ipea, dias depois da divulgação da pesquisa citada, veio a público se desculpar por ter feito uma troca nos gráficos referentes a duas questões, entre elas, a questão que chamou mais a atenção – não eram 65% dos entrevistados que concordavam com a afirmação “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”, e sim 26%. Os 65% de concordância na verdade eram referentes à afirmação “Mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar”. Confira a errata completa aqui.


Foi o que faltava para que as reações conservadoras à pesquisa, que já estavam sendo incansavelmente desfiadas na mídia e nas redes sociais, virassem, por fim, revanche. A pesquisa foi acusada inicialmente de ser enviesada, já que o método usado foi um e não outro, bem como a interpretação se baseou em determinadas teorias e não em outras; a amostra estaria mal caracterizada e não permitia fazer generalizações sobre o machismo da sociedade brasileira como um todo, pois a maioria era de mulheres; o Ipea teria um histórico de aparelhamento político pelo Partido dos Trabalhadores, que estaria, por sua vez, interessado em acobertar as denúncias de um escândalo na Petrobras. Com o erro assumido e o diretor exonerado, vieram mais acusações e mais teorias conspiratórias: a pesquisa foi propositalmente malfeita para gerar instabilidade social; o Ipea estaria querendo “abafar o caso” dada a grande repercussão, e, de novo, acobertar o PT. Entre outras ideias.

Ok, posto esse longo preâmbulo, vamos ao que me propus a discutir. O que isso tudo tem a ver com feminismo e Análise do Comportamento?

O estudo do Ipea foi construído de acordo com uma temática que já vem sendo estudada, pelo menos, desde os anos 70 – as teorias de gênero. Segundo uma visão geral dessas teorias, o estudo do gênero faz referência às “normas, obrigações, comportamentos, pensamentos, capacidades e até mesmo o caráter que se exigiu que as mulheres tivessem por serem biologicamente mulheres” (Garcia, 2011). Gênero faz referência aos papéis sociais que cada sexo ganha de brinde ao nascer, a depender de que penduricalho tem entre as pernas e do que está nos seus genes. Se é XY e tem pênis, é menino, logo há expectativas e padrões a serem seguidos referentes ao ideal de masculinidade; se é XX, é menina, e por sua vez tem a sua coleção de normas a seguir também. Interpretando de forma analítico-comportamental, gênero faz referência às práticas culturais que usamos para rotular comportamentos como “de homem” ou “de mulher” – gostar de certas cores, usar certas roupas, se enamorar pelo sexo oposto, brincar disso ou daquilo e por aí vai.

O estudo do Ipea acabou por fazer um rastreio de que práticas culturais estão em voga no nosso país atualmente. Práticas culturais, de forma simplificada, fazem referência a comportamentos que são repetidos de forma mais ou menos semelhante ao longo do tempo, passando de geração para geração, o que é permitido pelo nosso uso do verbo; por meio de regras e normas vigentes entre uma população, são construídas essas tradições e costumes (Moreira, Machado e Todorov, 2013). Skinner (1953) já falava de práticas culturais, embora não utilizando tal expressão, ao fazer análises sobre o comportamento em sociedade, que foram tema de uma seção inteira de sua obra fundamental, Ciência e Comportamento Humano.

O estudo do Ipea tornou pública a alta concordância das pessoas com algo tão triste quanto a ideia de que sob certas contingências, em certas circunstâncias, o abuso físico contra a mulher é justificado, tolerado ou, em outras palavras, escapa de punição. Mais ainda, a punição recai sobre a própria vítima. Além de enfrentar as situações aversivas diariamente impostas ao seu gênero – lançando mão do contracontrole que é possível, como a ação promovida por um grupo feminista de SP, que distribuiu alfinetes para as passageiras do metrô se defenderem dos “encoxadores” –, a mulher é frequentemente punida por não corresponder aos padrões comportamentais que se esperariam do seu gênero e/ou por denunciar os problemas de que sofre, das mais variadas formas. A prática de desqualificar mulheres pelo que elas vestem, caso suas roupas se enquadrem no que é visto como uma indesejável liberdade sexual – ou seja, roupas curtas e/ou justas, decotes, cores chamativas etc. – é conhecida no meio dos estudos das teorias de gênero e tem inclusive nome: slutshaming (do inglês slut, que pode ser traduzido como “vadia”, e shaming, verbo referente ao ato de envergonhar). 

“Uma premissa que todas as práticas de slutshaming têm em comum é o contraste entre um modelo ‘certo’ e ‘ideal’ de comportamento feminino contra o qual algum(ns) comportamento(s) de uma mulher é julgado e considerado desviante de tal norma, e ‘portanto’, digno de ser rechaçado como algo negativo, ‘errado’, ‘imoral’. Porém, conforme colocado dentro das perspectivas comportamental radical e feminista, não faz sentido algum falar de modelos ‘certos’ e ‘ideais’ de comportamento feminino (ou masculino, ou transgênero – ou mesmo de qualquer modelo), visto que isto pressupõe antes de tudo que exista algum modelo transcendental, essencialista e a-histórico ao qual seja necessário adequar-se (devido a alguma norma supostamente transcendental como a religiosa); porém não existem histórias pessoais de contingências ‘certas’ ou ‘erradas’, existem apenas diferentes histórias pessoais de contingências.” (Fonseca e Oliveira, 2013)

Há que se reconhecer que o erro do Ipea denota, no mínimo, falta de cuidado ao analisar os dados da pesquisa. No entanto, o erro, que foi devidamente apontado, não invalida a percepção de que vivemos uma sociedade ainda machista, perspectiva essa denunciada por estudos de teóricos de gênero já há muito tempo. Mesmo com os avanços obtidos desde o início do movimento feminista, ainda há muito para ser feito para que a sociedade adote práticas culturais que promovam um equilíbrio entre os dois gêneros.


Dados como os do Mapa da Violência, que apontaram que a Lei Maria da Penha não reduziu a violência à mulher; ou os da última pesquisa do Instituto Avon, que contaram com a percepção masculina sobre a violência contra a mulher; bem como dados divulgados por uma campanha da ONU, dando conta de que 70% das mulheres sofrerá algum tipo de violência durante a vida, sendo que na maioria dos casos esta é praticada por seu próprio parceiro, permitem lançar alguma luz sobre o que está sendo dito.

Por mais que, conscientemente e de acordo com as regras que nos são passadas em sociedade, violência seja algo repreensível e se saiba que mulheres devem ser tratadas de forma igualitária, ainda há, em comportamentos que persistem ao ser reforçados ou não suficientemente punidos, tendência a ver certas formas de segregação e violência como normais, ou “parte da tradição”. Em lugar de se ensinar homens a não estuprar ou abusar mulheres, a culpabilização da vítima pune apenas a estas últimas. Casos de estupro são considerados subnotificados e o ambiente hostil às denúncias femininas, mesmo em delegacias da mulher, sublinha isso – enquanto apenas aquele estuprador de perfil clássico tem chance de ser punido (o que estupra mulheres de forma serial, se aproveitando de descuidos e de becos escuros, ou se comportando de maneira abertamente agressiva, como o caso do universitário preso que citei no início do texto), são abertas concessões para outros comportamentos que também entram na definição de estupro, como abusar de uma mulher bêbada em uma festa, ignorar a recusa de sexo de uma companheira ou estuprar uma prostituta

Tais práticas culturais insidiosas são mais difíceis de combater. É preciso, primeiro, enxergá-las – e, queiramos ou não, a pesquisa do Ipea, mesmo errada, contribuiu para isso, ao escancarar a reação conservadora da sociedade a um resultado específico da pesquisa, enquanto outras questões foram deixadas de lado (alguém em sã consciência acredita que devamos estar aliviados porque não são 65% os que concordam com “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”, mas sim com “Mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar”?). Para enxergar a cultura em que vivemos, é preciso lançar mão da ciência crítica e esquecer a ilusão da neutralidade – ao analisar qualquer dado à luz dessa teoria ou não daquela, estaremos incorrendo num risco, mas a beleza da ciência é de que nada impede de que outras teorias possam ser utilizadas, bem como outros dados podem ser levantados. O que não dá mesmo é esperar que nunca se discuta algo que já vem sendo denunciado há tempos – e da denúncia, alguma hora, temos que passar à ação.

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COSMOS UPDATE:
O Datafolha realizou uma pesquisa em 7 de abril, retomando as questões polêmicas da pesquisa do Ipea. A pesquisa, restrita a residentes da cidade de SP, maiores de 16 anos, traz dados como os seguintes:

  • 12% concordam, total ou parcialmente, que mulheres que usam roupas que mostram o corpo devem ser atacadas;
  • 9% concordam, total ou parcialmente, que mulheres que usam roupas que mostram o corpo devem ser estupradas;
  • 47% concordam que é normal que homens assediem mulheres com roupas curtas ou decotadas; isso seria parte da natureza masculina;
  • 37% das mulheres já foram aconselhadas por amigos, familiares ou parceiro a trocar de roupa para evitar assédios;
  • 29% das mulheres já deixaram de usar uma roupa para evitar assédio.
A pesquisa traz também respostas a outras questões e as porcentagens discriminadas, entre homens e mulheres e de acordo com a faixa etária. 

Confira a matéria na íntegra neste link.
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Referências

Fonseca, K. e Oliveira, R. A. S. de. (2013). O slutshaming através de um olhar behaviorista radical. Não publicado.

Garcia, C. C. (2013). Breve história do feminismo. São Paulo, Claridade.

Moreira, M. B., Machado, V. L. S. e Todorov, J. C. (2013). Cultura e práticas culturais. In: Moreira, M. B. (org.) Comportamento e Práticas Culturais. Brasília, Instituto Walden 4.

Skinner, B. F. (1953/2007). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo, Martins Fontes.

3 comentários:

  1. (Deu problema no OpenId e acho que não foi meu comentário :()

    Não preciso nem dizer minha opinião sobre essa pesquisa do Ipea, sua reação e tudo isso que ela denota, né?
    Maas... interessante ver tudo isso pela perspectiva da Análise do Comportamento. Fiquei curiosa pra ler esse artigo "O slutshaming através de um olhar behaviorista radical."
    abraço,
    Júlia

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    Respostas
    1. Oi, Júlia!
      Pois é, é uma área pouquíssimo explorada ainda, mas tem como fazer. Aos poucos iremos fazendo. :)
      O artigo é na verdade um trabalho de faculdade de um colega da UFES, ele tá planejando ajustar pra publicar, se rolar claro que repassarei! :)
      Abração!

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  2. Excelente! Sou psicólogo e gosto muito da análise do comportamento. Sinto falta de profissionais da análise do comportamento lidando com estas questões tão urgentes para nossa sociedade! Foi ótimo ler o que você escrever... Abração!

    Wanderson Barreto
    Psicólogo
    CRP09/7301

    http://wbarretopsi.blogspot.com.br/

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