segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Por uma defesa da raiva

Li na última semana um texto (mais um dentre tantos) que falava da agressividade tão constante dos espaços feministas. No caso do texto, era discutida a agressividade contra os homens que tentavam se aproximar do movimento, com o conhecido argumento de que a revolução na sociedade também passará por desconstruir o machismo nos homens e que devemos aproximá-los se quisermos fazer isso, não apartá-los. Também já vi várias vezes mulheres falando de como deveríamos ser menos agressivas entre nós ao defender os aspectos específicos de cada alinhamento feminista, em vez de acusar, discutir e rachar umas com as outras. Não vou linkar o texto citado aqui porque acho que não vem ao caso, até porque, se você procurar, vai achar um bom punhado de textos sobre o assunto, com os mais variados argumentos: homens são aliados, não protagonistas, então devemos educar e manter nossos espaços; ai, mas eu não odeio homem, imagina; essa agressividade toda só divide o movimento, cadê sororidade; etc. (Comecei por ele por ter sido um texto disparador, mas na verdade faz tempo que penso em escrever sobre isso; não tenho interesse em fazer guerrinhas de ego nem apontar o dedo para mulher nenhuma, até porque não sou ninguém na fila do pão do feminismo internético brasileiro e espero de verdade que continue assim).

Eu mesma já concordei bastante com esses argumentos. Como psicóloga e analista do comportamento, tendia a levar a discussão para o lado individual, pensando em tudo que os autores da área falam sobre punição. Os maiores críticos do uso da punição para ensinar alguém talvez tenham sido o próprio Skinner, fundador da abordagem, e o Murray Sidman, seguidor direto do primeiro quanto a esse assunto. Muito basicamente, o que se fala sobre punição é: 1. não é efetiva, dado que uma pessoa punida ao fazer algo só aprende a não fazê-lo, mas não aprende nada melhor no lugar e, mais ainda, aprende a deixar de fazer apenas na presença de quem/o que o puniu, o que chamamos de contracontrole; 2. frequentemente gera produtos indesejáveis, como sentimentos de raiva, culpa, ansiedade, etc. na pessoa punida[i]. Ou seja, punição não ajuda e ainda atrapalha. No exemplo citado, além de só fazer com que o cara vá falar mal do feminismo pelas costas das feministas, ainda vai deixar ele com raiva em vez de se interessar por aprender de verdade alguma coisa.

Mas de uns tempos pra cá eu comecei a ficar bastante cética sobre o assunto. Primeiro que a punição, ao contrário do que a maioria dos analistas do comportamento costuma acreditar, não é o diabo feio que se pinta. Infelizmente, nosso meio é coercitivo[ii]. A coerção é uma realidade em qualquer ambiente. Frequentemente fazemos coisas que não queremos fazer, tomamos bordoadas que não imaginávamos tomar e o clima de tabu em se falar de métodos punitivos é bem ruim para uma abordagem que se diz científica. Segundo que os conceitos de punição e coerção vêm sendo já bastante discutidos. Carvalho Neto & Mayer (2011) apontam que Skinner, em diferentes momentos da sua obra, tratou reforçamento e punição como assimétricos e como se reforçar em vez de punir fosse sempre melhor, mas que não é bem assim – o reforçamento também acarreta subprodutos a que pouco atentamos, mas que o próprio Skinner até menciona em alguns momentos discutindo questões sociais, como a baixa resistência à frustração que pode causar (ver Skinner, 1987). Enfim, tem um milhão de questões conceituais que não vale a pena escarafunchar aqui nesse texto, mas é bom prestarmos mais atenção no que falamos sobre punição.

Para além dessas nerdices de behaviorista radical, comecei a me questionar sobre a propaganda que fazemos de tratar as pessoas sempre bem e sermos todas amigas e vamos dar as mãos e ser felizes dentro do feminismo. As primeiras a colocar o dedo na nossa cara com razão foram as feministas negras. O feminismo, enquanto movimento com esse nome e com uma série de preceitos específicos, sempre foi elitista e voltado para as questões de mulheres brancas e burguesas. Uma dessas mulheres sou eu. Eu me senti confortável no feminismo assim que percebi que minhas questões com a mulheridade são contempladas no seio do movimento. Eu posso sentar, ler, discutir e me sinto representada pela maioria dos tópicos que são discutidos. No entanto, nem todas são. Frequentemente existem casos de racismo dentro de grupos feministas e quando as mulheres negras vão apontar, são cobradas com os argumentos que citei acima. “Ah, mas vocês estão sendo agressivas”. “Ah, mas vocês estão dividindo o movimento”. “Ah, mas EU não achei isso que você está dizendo racista”. “Ah, mas EU não sou racista, tenho amigas negras”. “Ai, não precisa ser grossa comigo, cadê a sua sororidade”. And so on, and so on.

"O movimento feminista participa dos movimentos antiautoritários (...) Pertencer ao movimento representa a realização de uma nova ideologia, a pesquisa de sentido e de valores comuns. A essa nova ideologia denominou-se "sororidade": sisterhood is powerful (a sororidade é poderosa). Mas as questões de identidade racial ou nacional dividem o movimento, e a solidariedade comum das mulheres é rapidamente questionada pela suspeita da ignorância dos problemas próprios de cada grupo identitário, pelo temor da criação das novas formas de dominação entre homossexuais e heterossexuais, entre burguesas e proletárias, entre as mães e aquelas que não o são, entre as mulheres brancas e as mulheres negras (...)". (Fougeyrollas-Schwebel, 2009, p. 146).
Acontece que o movimento já é dividido, e não foram as feministas negras que o fizeram. Temos, como mulheres, coisas em comum, mas coisas que nos dividem porque assim a sociedade nos dividiu. Questões de classe, raça, orientação sexual e muitas outras devem ser incansavelmente discutidas e, queiramos ou não, às vezes vão doer nos nossos calos. Feminismo é ética e política, não é terapia de grupo, não é piquenique, não é exercício hippie de meditação, não é chá com biscoitos com as amigas. É uma desconstrução dolorosa diária – falando como behaviorista radical, um desvelamento de controles invisíveis a que nossos comportamentos estão submetidos sem que nem tenhamos nos dado conta, apesar de termos passado a vida sob eles. Infelizmente, dói e às vezes nos sentiremos pessoalmente atacadas, ou pessoas próximas de nós serão atacadas. Isso porque estou falando do meu lugar, que é o de feminista branca e acadêmica de classe média. Não posso sequer imaginar o que é ser negra e chegar num espaço que deveria me acolher para ver ser celebrado o mesmo racismo que sofreria do lado de fora – e, ao reclamar, ainda ter o estereótipo de angry black woman esfregado no meio da minha cara. (Não quero me delongar sobre isso aqui por receio de tokenizar a experiência alheia, mas quem sabe pela via da empatia as pessoas já reflitam sobre alguma coisa. E, pra quem quiser entender melhor isso sendo branca, tem mil textos de feministas negras a serem lidos, todos aí voando livres e disponíveis pela internet).

Continuando com o ceticismo, ainda tem o fato de que as aclamadas vantagens da pedagogia pacifista talvez não sejam tão grandes assim. Quantas de nós já se armaram de todo o reforçamento positivo da vida para explicar pacientemente por que um comportamento machista é machista para uma pessoa, para depois só ganhar um dar de ombros e um “essa é a minha opinião”? A desconstrução do patriarcado vai muito além de uma ação individual da ativista feminista. Não adianta pensar que é a nossa mágica racional explicativa que vai fazer alguém se interessar pelo tema. Pode fazer, ou pode não fazer. Além do mais, nenhuma de nós é obrigada a passar a mão na cabeça de ninguém – de novo, a internet tá aí cheia de textos pra quem quer se informar e eu não preciso pegar na mão de boy nenhum pra ser professorinha de feminismo e levar ele pelo maravilhoso mundo dos textos da Beauvoir. Assim como eu já reproduzi machismo e aprendi umas coisas mesmo tendo apanhado muito antes, as outras pessoas podem também. E, venhamos e convenhamos, esse não é nosso papel. O feminismo é um movimento a serviço das mulheres e é com elas que temos de nos importar.

Voltando à história da defesa da raiva: uma outra coisa muito nociva desse discurso de que feminista é raivosa é que alimenta estereótipos. Nós, mulheres, somos criadas pra achar que agressividade é coisa de homem. Homem pode gritar assistindo futebol, chutar aquele cone que entrou na frente do carro quando ele estava fazendo a baliza, falar alto enquanto coça o saco. Mulher, não. Mulher tem de ser paciente, abnegada, fofa, sorridente, explicar tudo com paciência e padecer no paraíso. Meu cu. Olha, não é nada disso. E, mesmo depois de se enfiar até o pescoço no feminismo, a gente continua com esses velhos hábitos. Sentimos culpa quando discutimos com alguém pelo que achamos certo, quando causamos aquele climão maneiro no almoço de domingo e quando somos chamadas de loucas pelo namorado. Sentimos que somos nós que estamos fazendo algo errado. Ora, acontece que a nós é dada uma pecha mais pesada de carregar. Sabe-se que mulheres que agem da mesma forma que homens são tidas como “mandonas”, “grosseiras”, “chefonas” enquanto o homem é o “assertivo” – inclusive tem experimentos que trazem evidências sobre como isso acontece (ver Ruiz, 2003). Ou seja, além de não podermos ser agressivas quando homens numa mesma situação o são, ainda somos vistas sob lentes diferentes.

E, por mais que eu não queira viver pedindo desculpas pela minha raiva, vou fazer um mea culpa. É claro que eu não estou falando de sairmos com uma gangue de mulher tacando fogo nos homi tudo. É claro que não estou falando de sairmos cada uma com uma tesoura de jardineiro na cintura, cortando o pinto do primeiro que falar merda. Sim, às vezes a agressividade é só agressividade – e merece atenção quando a vemos como a única forma de fazer as coisas ou de nos expressar, quando só somos agressivas porque não sabemos ser de outra forma. Às vezes, não serve de nada e ainda atrapalha, mesmo. Mas nem Gandhi fez uma marcha do sal toda vez que os britânicos faziam bosta, nem Jesus deixou de ser um cara legal porque saiu virando umas mesas no templo. Às vezes ser agressiva é legítimo. É, mais ainda, necessário. Nem tudo nos será dado com flores e um beijo e um abraço. Vamos ter de tomar alguns dos nossos direitos no grito, mesmo, como já os tomamos outrora.

E, sinceramente, se você não sente raiva quando pensa nas estatísticas sobre estupro, nos casos de racismo, nos feminicídios, na objetificação diária do nosso corpo, naquele abuso que você ou a sua amiga ou a sua vizinha ou a sua mãe sofreram; se você não sente raiva sabendo que ganhamos menos que os homens, e as mulheres negras menos ainda; se você não sente raiva ao pensar no que nos é diariamente negado desde tanto tempo...

Se você não sente raiva, é porque não está prestando atenção.

____________________________________________________________

[i] Esse é um resumo bem rasteiro do que chamamos de punição na análise do comportamento. Cabe apenas ressaltar que o conceito é bastante importante para nós e vai além do senso-comum do termo, que geralmente dá uma ideia de algo deliberadamente feito por alguém pra castigar outrem. Os verbetes da Wikipedia dão uma explicação simples do que é e da asserção que estou usando aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/Refor%C3%A7o e https://pt.wikipedia.org/wiki/Puni%C3%A7%C3%A3o.


[ii] Para mais sobre coerção, uma referência é o livro Coerção e suas Implicações, de Murray Sidman (publicado em 2011 pela Livro Pleno no Brasil). 


____________________________________________________________
Referências

Carvalho Neto, M. B. de & Mayer, P. C. M. (2011). Skinner e a assimetria entre reforçamento e punição. Acta Comportamentalia, v. 19, pp. 21-31. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=274520890004

Fougeyrollas-Schwebel, D. (2009). Movimentos feministas. In: Hirata, H; Laborie, F.; Le Doaré, H. & Senotier, D. (orgs.) Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo, Editora Unesp, pp. 144-149.

Ruiz, M. R. (2003). Inconspicuous sources of behavioral control: the case of gendered practices. The Behavior Analyst Today, vol. 4, nº 1, pp. 12-16. Disponível em: http://psycnet.apa.org/journals/bar/4/1/12.pdf&productCode=pa

Skinner, B. F. (1987). O que está errado com a vida cotidiana no mundo ocidental? Originalmente publicado em Upon Further Reflection, Englewood Cliffs, Prentice Hall, pp. 15-31. Disponível em: http://www.itcrcampinas.com.br/pdf/skinner/oque_ha_de_errado_com_o_mundo_ocidental3a.pdf

8 comentários:

  1. Acredito que o maior problema de sugerir militância pedagógica com o grupo opressor é partir do pressuposto equivocado de que as pessoas mantém suas posições de privilégio pq não percebem que são privilegiadas. Não é uma questão de desconhecimento ou incompreensão. É uma questão de entrar em contato com certos reforçadores que não estariam disponíveis se não houvesse desigualdade (puxando pro feminismo, isso fica bem claro em questões sexuais por exemplo).
    É por isso que eu acredito muito mais em um feminismo que foca na mudança das contingências sociais e nos indivíduos dos grupos oprimidos do que em um que tenta modelar o comportamento do opressor. Simplesmente pq existe uma variedade de reforçadores muito potentes mantendo o comportamento dessas pessoas.
    Ou a gente vai direto na raiz disponibilidade desses reforçadores, ou nada muda.

    ResponderExcluir
  2. Sensacional! Ando cansada desses textos pregando que temos que ser dóceis pra ganhar cookie de macho. O que conquistamos com esse discurso até hoje?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. obrigada, Lidiany, uma honra você aqui no meu bloguinho depois de eu tanto comentar textos seus. :D hahah

      o que me deixa mais chateada nessa história toda é que, no fim, tudo é pra ser escolhida como "a feminista certa" pelos homens.

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.